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Guerra dos Farrapos (1835-1845)

     Essa postagem não vai falar de batalhas nem exaltar feitos de combate ou "heróis". Falarei sobre o contexto político, econômico e social do período e sobre motivos que levaram os sul-riograndenses à revolta contra o Império e das causas da rendição.



     O Império brasileiro passava por uma forte turbulência política. A centralização política proposta pelo imperador batia de frente com o sistema federativo de governo. A Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, previa a nomeação dos presidentes das províncias - item que desagradou bastante as elites sul-riograndenses. O imperador abdicou, em 1831, mas a situação não melhorou tanto embora algumas medidas do "Avanço Liberal" da Regência vinham de encontro dos interesses das elites locais:


  • criação da Guarda Nacional (1831), braço armado das elites locais;
  • aprovação do Código de Processo Criminal (1832) que criava o cargo de Juiz de Paz eleito localmente;
  • Ato Adicional (1834) criava as Assembleias Legislativas estaduais.
     A derrota na Guerra da Cisplatina e consequente independência do Uruguai (1828) trouxe prejuízos para os estancieiros da província. Além de perder os campos na região do Prata, o novo país passou a combater o contrabando de gado, prática bastante comum na fronteira. A elite gaúcha culpava o Império pela derrota na guerra e, ao mesmo tempo, sabia de seu papel subalterno dentro do esquema político e econômico do Império, no qual servia apenas como guardiões da fronteira meridional. Os produtores foram os mais prejudicados, pois os charqueadores eram sócios minoritários de atacadistas do Rio de Janeiro (em sua maioria, portugueses). Outro fator que prejudicava os produtores era o imposto de importação ser muito menor que o de exportação - favorecendo o charque uruguaio.

     A elite local não entendia os motivos para o Império "defender" a Banda Oriental. Na verdade, era questão de política externa preventiva: o Império queria fazer o Uruguai um país economicamente viável impedindo sua incorporação à vizinha Confederação Argentina lideradas, desde 1829, por Juan Manuel de Rosas. Aliás, entender a política do Prata é essencial para entender o desenrolar da guerra. Outra razão para praticar uma política tarifária não-protecionista em relação ao charque justificava-se pelo charque ser comida para escravo, ou seja, precisava ser barata para garantir aos escravocratas lucrarem mais com seus negros. Um absurdo! Por isso, valia a pena comprar o charque platino: de melhor qualidade e menor preço. 


Juan Antonio Lavalleja
     No Uruguai, em 1830, Dom Fructuoso Rivera foi eleito pela Assembleia deixando em segundo plano o militante artiguista Juan Antonio Lavalleja, caudilho muito próximo de Bento Gonçalves, o comandante das tropas da fronteira. Os estancieiros estavam desgostosos tanto com o Império como com Rivera que estava engajado no combate ao contrabando de gado na fronteira com o Uruguai. Bento Gonçalves passou a acolher Lavalleja, tido como anarquista pelo Império. Temendo o avanço das ideias do militante artiguista por aqui, o presidente da Província, Fernandes Braga, propôs destituir Bento de suas funções. Aí foi tiro, porrada e bomba e a elite sul-riograndense foi à loucura. O presidente da província foi deposto em 20 de setembro de 1835 e começou a guerra.

     Segundo Bento Gonçalves, a rebelião era um ato "patriótico", destinado a substituir um governo "inepto" e "antinacional" por um "ilustrado" e "liberal", que respeitasse as autonomias provinciais. Quem era esse tal de Bento Gonçalves? Bento era um estancieiro-militar que casou-se com a uruguaia Caetana Garcia e estabelecera-se na Banda Oriental. Em 1825, com o movimento autonomista uruguaio, retornou à província do Rio Grande de São Pedro e entrou em contato com a maçonaria e o ideário liberal, do qual já havia sofrido alguma influência na Cisplatina. E, só um adendo, Bento nunca usou bombachas! Ela foi introduzida no "tradicionalismo" gaúcho anos depois.

     Logo após o início da Guerra, Manoel Oribe - antigo aliado de Lavalleja e próximo de Rosas - subiu a presidência do Uruguai. Oribe era inimigo de Rivera, que rebelou-se contra o novo presidente e foi buscar as mãos em Rio Grande - que estava nas mãos de legalista e não dos farroupilhas. Os conflitos entre Oribe e Rivera deram origem aos dois principais partidos do país: o Partido Colorado (ligado a Rivera) que é pró-liberalismo econômico e próximo dos unitários portenhos e o Partido Nacional (Blanco) fundado por Oribe, protecionista, vinculado à produção primária e aos federalistas argentinos.

     Oribe condicionou seu apoio aos rebeldes farrapos à sua separação definitiva do Império brasileiro. E os farrapos obedeceram cederam e, em 11 de setembro de 1836, Antonio de Souza Netto declarou a independência da República Rio-Grandense. Com a "independência", os gaúchos estabeleceram relações com os blancos uruguaios e os federalistas argentinos. Manoel Oribe permitiu o livre trânsito de reses, cavalos, homens e munição pela fronteira, além do acesso ao porto de Montevidéu - lembrando que o porto de Rio Grande estava nas mãos dos legalistas (pró-Império), dificultando o transporte de produtos da província. Rosas, no entanto, condicionou seu apoio à captura de Rivera, aliado dos unitários argentinos. Isso era muito difícil para os farrapos. A República recém instituída já começou a mudar seus rumos com o retorno de Bento Manuel Ribeiro às tropas farroupilhas. Agora, os farrapos buscaram aproximação com os colorados e unitários. Rivera (antes perseguido pelos farroupilhas) passou a apoiá-los e voltou à presidência do Uruguai em 1839. Em 1841, os colorados uruguaios e os unitários argentinos declararam apoio efetivo aos republicanos rio-grandenses pelo Tratado de San Fructuoso. Só um parêntese: a aliança se deu por necessidade de apoio efetivo dos vizinhos, visto que Oribe e Rosas deram um apoio velado por temerem reações do Império. Todavia, em troca de apoio político, os farroupilhas fizeram aliança com grupos ligados a ideiais bem diferentes dos defendidos por eles! Os ideais farroupilhas estavam muito mais próximos dos blancos (defensores do protecionismo e da produção primária assim como a elite sul-riograndense) e dos federalistas argentinos (contrários à centralização política e defensores de maior autonomia às províncias). Mas é difícil exigir coerência de elite!

Local onde foi assinada a Paz de Poncho Verde,
no atual município de Dom Pedrito.
     Bom, a alegria dos farrapos com o Tratado de San Fructuoso durou pouco. Em 1842, Rivera foi derrotado por federales argentinos e blancos uruguaios. Bento Manuel Ribeiro mudou de lado de novo e voltou a lutar pelo Império. Na Assembleia Farroupilha, conflitos com uma minoria oposicionista levaram à renúncia de Bento Gonçalves em agosto de 1843. Além disso, a queda de Rivera no Uruguai deixava os sul-riograndenses sem acesso ao porto de Montevidéu e a República, sem ter como escoar sua produção em nenhum porto, tornava-se economicamente inviável. Era o fim do ideal de liberdade para a elite local. Sorte que o Império queria negociar a paz temendo que sua antiga província do Sul fosse palco de uma invasão argentina. E foi assim depois de trocarem de lado mais do que o Bento Gonçalves trocava de roupa que o Império brasileiros e os revoltosos sul-riograndenses chegaram ao acordo em março de 1845 com o Tratado de Ponche Verde. Na prática, os gaúchos não venceram a guerra, mas também não saíram no prejuízo. Foram várias as concessões do Império:


  • permitiu a escolha do novo presidente da província;
  • anistia aos oficiais farroupilhas e sua reincorporação ao Exército imperial;
  • Império assumiu as dívidas dos farrapos;
  • aumentou imposto sobre o charque platino para 25%.
     A intenção do Império era garantir a lealdade dos sul-riograndenses mantendo-os como guardiães da fronteira visto que uma nova guerra na Bacia do Prata era iminente.

     Vale lembrar que não foram todos os gaúchos que pegaram em armas contra o Império e ficaram do lado dos revoltosos. Houve quem ficou do lado do Império, caso de Rio Grande, na qual o porto e a cidade permaneceram na mão dos legalistas pró-Império. Por outro lado, as ideias liberais embalaram grande parte do clero local que chegou, inclusive, a romper temporariamente com o Bispado do Rio de Janeiro ao qual pertenciam.

     Porém, sob a capa dos interesses liberais, os farroupilhas eram, na prática, tão conservadores quanto à elite imperial contra a qual lutaram. Por isso, é errôneo o uso do termo "Revolução Farroupilha" pois não era esse o interesse dos revoltosos, pois o mesmo grupo social continuaria no poder. A pretensão de liberdade, por exemplo, não chegava às senzalas. Os negros escravos, aliás, foram os maiores atingidos com essa guerra, mas já tratei disso anteriormente. Qual façanha mesmo que deve servir de modelo à toda a terra? Quando encontrarem uma, por favor, me avisem.

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