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A Guerra dos Muckers (1873-1874)

     A primeira colônia alemã fundada no Rio Grande do Sul, em São Leopoldo (1824), foi palco de um movimento denominado Mucker, iniciado em 1868. O termo mucker foi empregado com um sentido pejorativo, o de santarrões pouco confiáveis. O termo é usado aqui pois está institucionalizado no meio historiográfico, mas não recupera seu sentido original.

Morro Ferrabraz

João Jorge e Jacobina Maurer
     Os Muckers eram colonos reunidos em torno da liderança do casal Jacobina Mentz Maurer e João Jorge Maurer, na região do Morro Ferrabraz (hoje, parte do município de Sapiranga. Jacobina era filha de colonos alemães de Novo Hamburgo. Sua família tivera problemas de ordem religiosa na Alemanha. Adeptos do grupo pietista da Igreja Luterana, não se conformavam com as novas orientações da instituições, acusando-os de desviar-se dos ensinamentos bíblicos. O avô de Jacobina, Libório Mentz, coordenou o grupo descontente e fundou uma nova igreja. Logo depois, emigraram para o Brasil onde construíram uma igreja em Novo Hamburgo. Jacobina foi alfabetizada em alemão e não falava nem entendia a língua portuguesa. Em 1866, Jacobina casou-se com João Jorge, também filho de imigrantes alemães. João Jorge era curandeiro e atendia doentes em sua casa. Em 1872, sua fama já ia além do Vale dos Sinos e recebia clientes oriundos de Pelotas, Rio Grande e Porto Alegre. O Wunderdoktor (doutor milagroso), como ficou conhecido, preparava remédios com ervas que eram vendidos aos clientes ou trocados por mantimentos ou produtos agrícolas. Além da questão religiosa, é importante destacar a carência de médicos em toda a região de imigração - só em São Leopoldo havia atendimento especializado.

     Logo após o casamento, Jacobina passou a sofrer de desmaios cada vez mais prolongados - o que era visto pelos colonos como fruto de forças sobrenaturais, transformando-a de coadjuvante a centro das atenções no Ferrabraz. Aos poucos, Jacobina consolava os doentes com leituras e interpretações de trechos da Bíblia, o que passou a desagradar representantes religiosos. Vamos relembrar que a maioria dos alemães que migraram eram luteranos e, no Brasil, tinham permissão, apenas, para realizar seus cultos em casas sem aspecto de templo - pois o Império brasileiro tinha o catolicismo como única religião oficial. Os protestantes, inclusive, não tinham os mesmos direitos políticos e civis: não podiam concorrer a cargos públicos nem tinham seus casamentos considerados válidos.

     Na prática, católicos e protestantes viviam sua fé de modo meio autônomo pois não tinham presença efetiva de suas igrejas. O bispado de Porto Alegre, por exemplo, só foi criado em 1848, dependendo até então do Rio de Janeiro. Entre os poucos padres que atuaram por aqui até essa data estavam os jesuítas espanhóis, que se limitavam a visitas esporádicas para realizar batizados e casamentos e não falavam o alemão. Os católicos alemães só tiveram seus primeiros padres chegando em 1849, época em que apenas três capelas tinham sido construídas nas regiões de colonização alemã.

Cenas do filme "A Paixão
de Jacobina", 2002, dirigido
por Fábio Barreto
     A marginalidade em que viviam os alemães luteranos propiciou o surgimento do grupo de Jacobina, com crescente número de participantes. A partir de 1873, os muckers se isolaram e aumentaram a polêmica em torno deles: retiraram seus filhos da escola, abandonaram as igrejas (católica e luterana), deixaram de beber, fumar, jogar e participar das atividades sociais. Tais atitudes intensificaram o discurso de demonização dos muckers por parte dos religiosos e autoridades civis. Os púlpitos das igrejas eram usados para indicar a "ameaça" que os dissidentes representavam, artigos de jornal incitavam as autoridades a tomarem uma atitude, um abaixo-assinado começou a circular pela região... A situação forçou as autoridades civis a agirem. Iniciou-se uma realização de busca de armas na casa dos Maurer. Não encontraram nada. Com a negativa de João Jorge a prestar depoimento na delegacia, ele e seus companheiros foram presos. O casal foi enviado a Porto Alegre, Jacobina ficou internada na Santa Casa, mas foram liberados dias após, pois nada contra eles foi provado.

     Após a volta do casal a Ferrabraz, a situação já era outra. O número de adeptos já era bem maior, o que levou à construção de um novo prédio, ao lado da casa. Fatos dos dias seguintes agravaram as relações entre a população e os mucker:
  • Jacob Kramer, comerciante e opositor do grupo, foi encontrado morto dias depois de desaparecer. Mesmo sem encontrar vestígios de violência, espalhou-se a notícia de que teria sido morto pelos mucker;
  • Pedro Hirt, que sofria com hipocondria, suicidou-se após visitar a casa de Jacobina e a influência do casal foi vista como a causa da tragédia;
  • O inspetor João Lehn foi atacado em frente a sua residência por dois homens a cavalo, que o feriram gravemente. A culpa caiu sobre quem?
     Após a agressão ao inspetor - embora sem confirmação de ligação com o ataque - trinta e três mucker foram presos e levados para São Leopoldo. Diante das arbitrariedades policiais, perseguições e saques de que foram vítimas, os muckers procuraram as autoridades civis em busca de seus direitos, mas não foram atendidos. Levaram um abaixo assinado, inclusive, ao Imperador, mas tiveram seu pedido indeferido.

Cena do filme "Os Mucker", de 1978.
     Aos poucos, os muckers passaram a adquirir armamentos e construíram a casa nova, em forma de mutirão, tendo os adeptos passado a contribuir com dinheiro. Nessa época, Jacobina já tomava a frente do movimento - seu marido passou a ser considerado fraco pelos adeptos - e passou a ser considerada como uma messias, nova encarnação de Cristo que veio para salvar os colonos oprimidos.

     No final de abril de 1874, o clima de guerra tomou conta da colônia. No dia 30, Jorge Haubert, ex-homem de confiança de Jacobina e atual inimigo, foi assassinado. Além disso, a morte da família de Martinho Kassel num incêndio. Ele e a esposa haviam abandonado os muckers para retornar às suas igrejas. Novamente, os muckers foram acusados. 

Cena do filme "Os Mucker", de 1978.
     A situação foi ficando cada vez mais insustentável. A elite econômica e cultural da colônia usava seus periódicos para tecer duras críticas em um discurso de ódio aos muckers, "elemento que deveria ser destruído, pois punha em perigo tudo o que de bom e bele a cultura e a ciência alemãs haviam produzido e poderiam levar ao Brasil", esbravejava o jornalista Karl von Koseritz nas páginas de seu jornal, o Deutsche Zeitung.

Cruz de Jacobina - nesse local, os muckers se
refugiaram após o ataque das tropas.
     Na noite de 25 de junho de 1874, os muckers atacaram alguns de seus principais inimigos, matando-os e incendiando suas casas (sem roubar nada). No dia seguinte, foi a vez dos moradores da região saquearem e incendiarem várias casas abandonadas dos muckers. Os ataques mútuos seguiram nos dias subsequentes. No dia 28 de junho, o coronel Genuíno Sampaio, acompanhado de 98 homens, seguiu para o Morro Ferrabraz e atacou os muckers, que os receberam com tiros, obrigando-os a fugir. O segundo ataque aconteceu em 19 de julho quando a casa dos Maurer foi incendiada e vários homens, mulheres e crianças foram mortos, roubados e violados. Fugiram Jacobina e mais 17 muckers que foram mortos pelas tropas em 2 de agosto de 1874.

     Para quem gosta de resumos...

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