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O suicídio de Vargas - há 60 anos

     Aquele agosto de 1954 ficará para sempre marcado na história do Brasil como o mês em que o presidente "morrera suicidado". E o suicídio de Getúlio completa, hoje, 60 anos. Na véspera de seu suicídio, Getúlio conduziu a última reunião ministerial de seu governo e registrou em sua agenda sua intenção prévia de só sair morto do Palácio do Catete: "Já que o ministério não chegou a uma conclusão, eu vou decidir: determino que os ministros militares mantenham a ordem pública. Se a ordem for mantida, entrarei com pedido de licença. Em caso contrário, os revoltosos encontrarão aqui o meu cadáver." A nota oficial da Presidência da República, divulgada durante a madrugada do dia 23 para 24 de agosto, indicava a intenção de Getúlio de se licenciar do cargo desde que mantendo-se a ordem e os poderes constituídos, "em caso contrário, persistirá inabalável no propósito de defender suas prerrogativas constitucionais, com sacrifício, se necessário, de sua própria vida". 

     O que parecia mera retórica de Getúlio concretizou-se no amanhecer daquela terça-feira, 24 de agosto de 1954. A princípio, uma das últimas pessoas a ver Getúlio vivo foi seu "amigo certo das horas incertas" Tancredo Neves que relatou, trinta anos depois, o que aconteceu no dia do suicídio:

"Por volta das sete e meia, oito horas da manhã, ouviu-se o estampido seco. Desceu o elevador, às pressas, o Coronel Dornelles, um dos oficiais de serviço na presidência. Nós subimos apressadamente para o quarto onde o presidente se achava. Os primeiros a entrar foram o General Caiado, Dona Darci, Alzira, Lutero e eu. Encontramos o presidente de pijama, com meio corpo para fora da cama, o coração ferido e dele saindo sangue aos borbotões. Alzira de um lado, eu do outro, ajeitamos o presidente no leito, procuramos estancar o sangue, sem conseguir. Ele ainda estava vivo. Havia mais pessoas no quarto quando ele lançou um olhar circunvagante e deteve os olhos na Alzira. Parou, deu a impressão de experimentar uma grande emoção. Neste momento, ele morre. Foi uma cena desoladora. Todos nós ficamos profundamente compungidos; esse desfecho não estava na nossa previsão. O presidente em momento nenhum demonstrou qualquer traço de emoção, nunca perdeu o seu autodomínio, jamais perdeu sua imperturbável dignidade, de maneira que foi um trágico desfecho, que surpreendeu a todos e nos deixou arrasados."

     Com o suicídio, coube a Café Filho, vice-presidente, assumiu a presidência. Todavia, longe de ser uma aliado de Vargas, Café Filho fazia, na prática, oposição do presidente e nomeou uma nova equipe de ministros para dar uma nova orientação ao governo federal.

     Nas ruas, a comoção popular foi geral. O suicídio de Getúlio calou a força a oposição. Carlos Lacerda viu-se obrigado a deixar o país. A sede de seu jornal foi destruída, assim como muitas lojas que remetiam à oposição de Vargas. No velório de Vargas, milhares de pessoas estiveram presentes - os números mais baixos apontam a presença de 100 mil pessoas.

      Getúlio teria deixado duas cartas: uma manuscrita e outra datilografada (a famosa carta-testamento), ambas lidas diversas vezes nas rádios naquela terça-feira. Ambas tem um conteúdo muito semelhante. Abaixo, a carta manuscrita:

“Deixo à sanha dos meus inimigos, o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer, por este bom e generoso povo brasileiro e principalmente pelos mais necessitados, todo o bem que pretendia. A mentira, a calúnia, as mais torpes invencionices foram geradas pela malignidade de rancorosos e gratuitos inimigos numa publicidade dirigida, sistemática e escandalosa.
Acrescente-se a fraqueza de amigos que não defenderam nas posições que ocupavam à felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei com honras e mercês, à insensibilidade moral de sicários que entreguei à Justiça, contribuindo todos para criar um falso ambiente na opinião pública do país contra a minha pessoa.
Se a simples renúncia ao posto a que fui levado pelo sufrágio do povo me permitisse viver esquecido e tranqüilo no chão da pátria, de bom grado renunciaria. Mas tal renúncia daria apenas ensejo para, com mais fúria, perseguirem-me e humilharem-me. Querem destruir-me a qualquer preço. Tornei-me perigoso aos poderosos do dia e às castas privilegiadas.
Velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor, não dos crimes que não cometi, mas de poderosos interesses que contrariei, ora porque se opunham aos próprios interesses nacionais, ora porque exploravam, impiedosamente, aos pobres e aos humildes.
Só Deus sabe das minhas amarguras e sofrimentos. Que o sangue dum inocente sirva para aplacar a ira dos fariseus. Agradeço aos que de perto ou de longe me trouxeram o conforto de sua amizade. A resposta do povo virá mais tarde...”
     Mais famosa e difundida, a carta-testamento é, igualmente, um documento histórico que evidencia muito sobre os dramas e tensões que levaram Getúlio a decidir pelo suicídio:

“Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam; e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo.
A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.
Quis criar a liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás, mal começa esta a funcionar a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o povo seja independente.
Assumi o governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia a ponto de sermos obrigados a ceder.Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo e renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser o meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.
Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com perdão. E aos que pensam que me derrotam respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo, de quem fui escravo, não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate.
Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história.” 
    De qualquer modo, Getúlio estava inscrito na história, mas seu ato repercutiu e, sem dúvida, mudou os rumos da política da década de 1950. Na opinião desse humilde historiador, não cabe a nós o exercício do "se" na História. É sempre perigoso pensar em como teria se dado o desenrolar do seu governo "se" Vargas não tivesse se suicidado. Cabe ao historiador analisar os fatos a partir das fontes de que dispomos e, na minha singela opinião, Getúlio conseguiu deixar ao povo sua imagem do "pai dos pobres" e não ficar marcado pelo seu passado de ditador. Com o suicídio, Getúlio tornou inviável à oposição investigar as irregularidades denunciadas em seu governo. Assim, a imagem do PTB ficou limpa (só naquela época né!), permitindo vitórias eleitorais nos anos seguintes.

      Para finalizar as postagens sobre o suicídio do ex-presidente, convido-os a analisarem a letra de duas canções sobre esse dia marcante. Uma delas foi lançada só em 1962 por Teixeirinha:
"Vinte e quatro de agostoA terra estremeceuOs rádios anunciaramO fato que aconteceu,As nuvens cobriram o céuO povo em geral sofreuO Brasil se vestiu de lutoGetúlio Vargas morreu!
Seu nome ficou na históriaPra nossa recordaçãoSeu sorriso era a vitóriaDa nossa imensa naçãoCom saúde ele venceuGuerra e revoluçãoDepois foi morrer a balaPela sua própria mão."
     A outra, melancólica, dolorida e exagerada hiperbólica, mostra um pouco do sentimento que assolou boa parte da população com o suicídio do presidente:

"Jesus Cristo pelo povo
Padeceu morte, Paixão
Getúlio foi outro Cristo
Varou o seu coração
Com uma bala sublime
Prá salvar toda nação
Morreu, mas ressuscitou
E subiu aos céus com glória
Assim há de ser Getúlio
Que vai ficar na memória
Viverá eternamente
Alumbrando a nossa história
Todo povo brasileiro
Tem o coração trancado
Por saber tristonhamente
Que o nosso presidente
Morrera suicidado."

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