Pular para o conteúdo principal

A China decidiu que “basta!” É hora de construir um mundo “desamericanizado”.

     Como as postagens sobre a China bombam acessos aqui no blog, posto um texto interessantíssimo de Pepe Escobar. O cara escrevia para a Folha de São Paulo na década de 1980 e depois trabalhou em Los Angeles, Paris, Milão, Singapura, Bangcoc e Hong Kong e escrevendo para jornais da região, entre eles a rede Al Jazeera. Hoje, é correspondente do Asian Times e o que diz é para ser lido com a atenção que merece quem, há mais de 20 anos, vem observando o que se passa no outro lado de um mundo que, depois do fim da guerra fria, todos passaram a achar que tinha um lado só.
China_Desamericanizacao01

Pepe Escobar (correspondente do Asian Times)

     É isso. A China decidiu que “basta!” Tirou as luvas (diplomáticas). É hora de construir um mundo “desamericanizado”. É hora de “uma nova moeda internacional de reserva” substituir o dólar norte-americano.
     Está tudo lá, escrito, em editorial da rede Xinhua, saído diretamente da boca do dragão. E ainda estamos em 2013. Apertem os cintos – especialmente as elites em Washington. Haverá fortes turbulências.
     Longe vão os dias de Deng Xiaoping de “manter-se discreto”. O editorial da Xinhua mostra, em formato sintético, a gota d’água que fez transbordar o copo do dragão: o atual “trancamento” (shutdown) nos EUA. Depois da crise financeira provocada por Wall Street, depois da guerra do Iraque, um mundo “desentendido”, não só a China, quer mudança.
Esse parágrafo não poderia ser mais explícito:
     “Sobretudo, em vez de honrar seus deveres como potência liderante responsável, uma Washington interessada só em si mesma abusa de seu status de superpotência e gera caos ainda mais profundo no planeta, disseminando riscos financeiros para todo o mundo, instigando tensões regionais e disputas territoriais, e guerreando guerras ilegítimas, sob o manto de deslavadas mentiras.
     A solução, para Pequim, é “desamericanizar” a atual equação geopolítica – a começar por dar voz mais ativa no FMI e no Banco Mundial a economias emergentes e ao mundo em desenvolvimento, o que deve levar à “criação de uma nova moeda internacional de reserva, a ser criada para substituir o dólar norte-americano hoje dominante”.
     Observe-se que Pequim não advoga a sumária extinção do sistema de Bretton Woods – não, pelo menos, já; quer, isso sim, mais poder para decidir. Parece razoável, se se considera que a China tem peso apenas ligeiramente superior ao da Itália, no FMI. A “reforma” do FMI – ou coisa parecida – está em andamento desde 2010, mas Washington, como seria de esperar, vetou todas as alterações substanciais, até agora.
     Quanto ao movimento para afastar-se do dólar norte-americano, também já está em andamento, com graus variados de velocidade, especialmente no que diga respeito ao comércio entre os países BRICS, as potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que já está sendo feito, hoje, predominantemente, nas respectivas moedas. O dólar norte-americano está lentamente, mas firmemente, sendo substituído por uma cesta de moedas.
     A “desamericanização” também já está em curso. Considere-se, por exemplo, a ofensiva de charme dos chineses pelo Sudeste Asiático, que está acentuadamente começando a inclinar-se na direção de mais ação com principal parceiro econômico daqueles países, a China. O presidente Xi Jinping da China, fechou vários negócios com a Indonésia, a Malásia e também com a Austrália, apenas umas poucas semanas depois de ter fechado outros vários negócios com os “-stões” da Ásia Central.
     A empolgação chinesa com promover a Rota da Seda de Ferro alcançou nível de febre, com as ações das empresas chinesas de estradas de ferro subindo à estratosfera, ante o projeto de uma ferrovia de trens de alta velocidade até e através da Tailândia já virando realidade. No Vietnã, o premiê chinês Li Keqiang selou um entendimento segundo o qual querelas territoriais entre dois países no Mar do Sul da China não interferirão com mais e novos negócios. Pode-se chamar de “pivotear-se” para a Ásia.

Todos a bordo do petroyuan
     Todos sabem que Pequim possui himalaias de bônus do Tesouro dos EUA – cortesia daqueles massivos superávits acumulados ao longo dos últimos 30 anos, mais uma política oficial de manter lenta, mas segura, a apreciação do yuan.
     E Pequim, simultaneamente, age. O yuan está também lenta, mas em segurança, se tornando mais conversível nos mercados internacionais. (Semana passada, o Banco Central Europeu e o Banco do Povo da China firmaram acordo para uma troca de moeda (orig. swap) de US$45-$57 bilhões, que aumentará a força internacional do yuan e melhorará seu acesso ao comércio financeiro na área do euro.)
     A data não oficial para a total conversibilidade do yuan cairá em algum ponde entre 2017 e 2020. A meta é clara: afastar-se de qualquer respingo da dívida dos EUA, o que implica que, no longo prazo, Pequim está-se afastando desse mercado – e, assim, tornando muito mais caro, para os EUA, tomarem empréstimos. A liderança coletiva em Pequim já fechou posição sobre isso e está agindo nessa direção.
     O movimento na direção da plena conversibilidade do yuan é tão inexorável quanto o movimento dos BRICS na direção de uma cesta de moedas que, progressivamente, substituirá o dólar norte-americano como moeda de reserva. Até lá, mais adiante nessa estrada, materializa-se o evento cataclísmico real: o advento do petroyuan – destinado a ultrapassar o petrodólar, tão logo as petromonarquias do Golfo vejam de que lado ventam os ventos históricos. Então, o bate-bola geopolítico será outro, completamente diferente.
     Pode ser processo longo, mas é certo que o famoso conjunto de instruções de Deng Xiaoping está sendo progressivamente descartado: “Observe com calma; proteja sua posição; lide com calma, com as questões; esconda nossas capacidades e aposte no nosso tempo; seja discreto; e jamais reclame a liderança.”
       Uma mistura de cautela e escamoteamento, baseada na confiança que os chineses têm na história, e levando em consideração uma grave ambição de longo prazo – era Sun Tzu clássico. Até aqui, Pequim andou devagar; deixando que o adversário cometa erros fatais (e que coleção de erros de multitrilhões de dólares…); e acumulando “capital”.
     Agora, chegou a hora de capitalizar. Em 2009, depois da crise financeira provocada por Wall Street, ainda havia chineses que resmungavam contra “o mau funcionamento do modelo ocidental” e, em suma, contra o “mau funcionamento da cultura ocidental”.
      Beijing ouviu [Bob] Dylan (legendado em mandarim?) e concluiu que, sim, the times they are a changing [os tempos estão mudando]. Sem que se veja nem sinal de avanço social, econômico e político – o “trancamento” [shutdown] nos EUA seria outra perfeita ilustração, se se precisasse de ilustração – de que os EUA deslizam tão inexoravelmente quanto a China, pena a pena, vai abrindo as asas para comandar a pós-modernidade do século 21.
      Que ninguém se engane: as elites de Washington lutarão contra, como se estivessem ante a pior das pragas. Mesmo assim, a intuição de Antônio Gramsci precisa ser atualizada: a velha ordem morreu, e a nova ordem está um passo mais perto de nascer.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Guerra do Paraguai (1864-1870)

     Antes de falar propriamente do conflito, vamos recordar que o antigo Vice-Reinado do Rio da Prata não sobreviveu como unidade política ao fim do colonialismo espanhol. Com as independências americanas, nasceram, naquele espaço territorial após longos conflitos, a Argentina, o Paraguai, a Bolívia e o Uruguai.  Independências latino-americanas      A República Argentina surgiu depois de muitos vaivéns e guerras em  que se opunham os unitários e os federalistas. Os unitários defendiam um modelo de Estado centralizado, sob o comando da capital do antigo vice-reinado, Buenos Aires. Seus principais defensores eram os comerciantes da capital que, assim, poderiam assegurar o controle do comércio exterior argentino e apropriar-se das rendas provenientes dos impostos alfandegários sobre as importações. Já os federalistas  reuniam as elites regionais, os grandes proprietários, pequenos industriais e comerciantes mais voltados para o mercado interno. Defendiam o Estado descentrali

A Direita na Europa

Se a América Latina tem seguido o rumo a esquerda, a Europa vai à direita. É o que se tem observado com o crescimento dos partidos de direita no Velho Mundo. Em postagem recente, trabalhei os conceitos de esquerda e direita e, sim, eles existem hoje e são perceptíveis. É verdade que a direita na Europa tem procurado se "modernizar" para conquistar a maioria dos eleitores. E, com a crise econômica mundial de 2008, houve a consolidação dessa tendência de "direitização europeia". Isso já ocorreu na crise de 1929, quando os governos de direita ganharam força depois da crise com Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália, por exemplo. Calma, isso não quer dizer que a Europa esteja a beira de u m novo nazismo. Não é para tanto! Mas a crise faz com que o eleitorado opte por governos tradicionais, conservadores, com os quais saibam que não haverá mudanças de rumos e tudo seguirá como está e talvez até melhore. De acordo com o escritor e jornalista Álvaro Vargas Llosa, "a

História do Rio Grande do Sul - Os Sete Povos das Missões

     Instrumento importante da Igreja na Contra-Reforma, a Companhia de Jesus foi criada por Inácio de Loyola, em 1534 (oficializada pelo Papa Paulo III em 1540), com o objetivo de "recatolizar" as regiões convertidas ao protestantismo. Sua atuação na América foi marcante, mas estiveram, também, na Índia, China e Japão durante essa época. Na América Portuguesa, a atuação dos jesuítas iniciou-se em 1549 em Salvador - na América Espanhola iniciou em 1610.      Nem sempre os jesuítas eram eficazes em sua conversão dos nativos. Após uma conversão inicial, marcada pelo batismo, muitos guaranis retornavam às suas práticas indígenas não sendo fieis às práticas e costumes cristãos. As reduções, no entanto, serviram à Coroa portuguesa, pois o "adestramento" dos nativos facilitava o acesso de mão-de-obra barata e abundante aos paulistas que tinham grande dificuldade de fazer cativos indígenas. Como eram hábeis agricultores, os tupi-guaranis eram "de grande valor&qu